(este post encontra-se cronologicamente fora do contexto, pois corresponde ao início de Maio, quando estávamos em Dharamkot, mas a hesitação em escrever sobre a minha experiência no Vipassana, fez com que só agora este texto visse a luz do dia… ou dos pixelsJ)
Depois de muita espera pelo início de um novo curso, tivemos que acordar de madrugada para colocar o nosso nome na lista de espera, na esperança que houvessem desistências e conseguisse-mos vaga no curso de Vipassana, pois à meses que as inscrições estava completas.
Às quatro da tarde desse dia, tivemos a confirmação do sentimento que tinha desde o inicio, de que íamos conseguir entrar os dois.
Mutámo-nos da guesthouse onde estávamos de “armas e bagagens” para o Centro de Vipassana de Dharamkot, para enfrentarmos o burocrático processo de inscrição.
Só à chegada ao quarto que me foi atribuído é que me apercebi e tomei pela primeira vez consciência do que me estava a propor fazer: dez dias, afastada do mundo, sem falar ou comunicar, por olhar ou gestos, com as outras pessoas, cumprindo um rígido horário para dormir, descansar e para tomar as refeições, tendo como objectivo principal a meditação.
Chama-se Curso de Meditação mas não se trata propriamente de um conjunto de instruções ou métodos para aprender a meditar: trata-se de um caminho (dhama) que tem que ser percorrido por cada um, solitária e individualmente, seguindo para isso as orientações proferidas diariamente pelo senhor Goenka, que criou este método.
O quarto que me foi atribuído, um verdadeiro luxo tendo em conta as condições do centro e o país em que estamos, era um pequeno compartimento, ocupado por uma estreita e curta cama, e com o espaço suficiente para passar até à porta de acesso à casa de banho, de onde podia ver a floresta de cedros que envolve todo o centro, através do vidro partido da janela.
Pela claraboia existente no tecto do quarto podia ser o sol a atravessar as árvores e pelas sombras projectadas nas paredes do quarto ia tendo a noção da passagem do tempo, durante os intervalos para descanso; é interdito o uso de telemóvel, máquinas fotográficas, ou de outros equipamentos elétricos, assim como de livros, cadernos, canetas ou qualquer outro objecto que nos possa distrair os nossos pensamentos do objectivo de estarmos em contacto connosco.
A maior parte do dia era passado no maior edifício do centro, o “Meditation Hall”, uma sala grande, ventilada, mantida permanente na penumbra apesar de, a toda a volta, ser rasgada por janela que emolduravam a paisagem densamente de pinheiros. Este era o único local que homens e mulheres partilhavam, pois tanto o refeitório, os dormitórios e as zonas envolventes estavam separadas.
Os quatro dias que lá passei fizeram-me perder totalmente a noção de tempo, pois a rígida rotina e a falta de contacto com os outros ou com o exterior, fazem-nos perder intensionalmente as referências, de forma a ficarmos mais focados em nós para assim fazermos o nosso percurso, caminho, com o mínimo de distrações ou dispersões.
De início pareceu-me exagerada essa atitude tão escrupulosa, mas logo ao segundo dia a vontade de comunicar com alguém foi desparecendo, sendo substituída por uma necessidade de solidão. Mesmo o entusiasmo inicial de passear e de ir conhecendo os limites do espaço ou de apanhar alguns dos raios de sol que corajosamente atravessam a densa floresta de cedros, foi rapidamente substituída pela necessidade de descanso e de isolamento, que me levavam a ir directamente para o quarto, nos intervalos dos períodos de meditação.
Todo o quarto convida ao isolamento desde o momento em que entrei: básico, sem decoração ou mobiliário, para além da cama e de uma minúscula prateleira feita em pedra. Sentia-me como um monge numa cela; inicialmente chamava-lhe catre com alguma ironia, mas rapidamente se transformou num refúgio.
O vespertino horário de ir para a cama, à 9h da noite, tornou-se o momento mais ansiado do dia, que começava implacavelmente às 4h da manhã com o toque de uma campainha e meia hora mais tarde com o som do gongo que marcava o inicio da meditação matinal.
Estranhamente o acordar não era difícil, mas durante as duas horas de meditação que se seguiam o meu estômago reclamava por comida.
As duas principais refeições, o pequeno-almoço às 6.30h da manhã e o almoço às 11h, eram uma verdadeira consolação. O jantar, por volta 5h da tarde era bastante pobre tendo em conta as horas que ainda tínhamos pela frente, consistindo em fruta, tostas e algum arroz tufado.
Para compensar o pequeno-almoço, também servido em estilo de buffet, tinha pão caseiro, fruta, grão e sempre presente “chai”, chá preto com leite, disponível a todas as refeições. A ementa variava a todas as refeições, e a comida foi ficando cada vez melhor ao ponto de no quarto dia o pequeno-almoço apresentar “idlys” e “sambar”, típicos do sul da Índia e difíceis de encontrar por estas paragens, e que já não comida desde a primeira vez que estive na Índia, à cinco anos.
Ao almoço houve sempre arroz servido com deliciosos carris de legumes que formam sempre variando entre batata, courgettte, abóbora e couve-flor, juntamente com sopa de lentilhas ou por um caldo de legumes; tudo acompanhado de “chapatis”, pães indianos, mas feitos em versão miniatura. Muitas foi também servida sobremesa… iogurte, bolinhos, tudo com muito açúcar, e geralmente pouco convidativos como a maioria dos doces indianos.
Parece exagerado estar a descrever com tanto detalhe a comida, ainda para mais tendo sido recomendado para não exagerar nas doses pois tal prejudica a concentração e dificulta o trabalho de meditação, mas era o momento importante para mim e marcava as várias fases do dia, divididos sempre da mesma forma entre períodos de meditação na sala principal e de descanso no quarto.
Todos os dias, ao fim do dia, ouvíamos as gravações ou víamos um video, as instruções para seguirmos no dia seguinte, assim como uma pequena palestra de cerca de uma hora proferido pelo Goenka, sobre o modo de funcionamento do método Vipassana e a forma como devíamos trabalhar para conseguir percorrer o “caminho” e tentar tomar contacto com a nossa consciência.
Havia momentos em que tudo parecia sem sentido, uma farsa, um conjunto de tiques e regras complicadas para parecer mais eficaz e verídico… mais uma das muitas ofertas “espirituais” que se encontram pela Índia, mas no fim do primeiro dia mudei de ideias: parecia que o que o Goenka dizia se encaixava com o que eu sentia, com as duvidas que eu tinha e eram proferidas as frases certas para incentivar e encorajar a continuação do trabalho…. “star again”… “you are bond to succed”… “work hard and diligently”… Todas as frases eram repetidas duas ou mais vezes, inicialmente em hindi e depois repetidas em inglês. Às vezes encorajava, mas às vezes cansava e parecia que a voz do Goenka soava sinistra e cavernosa.
Mas vamos ao que verdadeiramente interessa: o método usado para atingir a meditação. Inicialmente tenta-se diminuir a dispersão dos pensamentos que passam pelo nosso cérebro, fazendo com que a atenção se foque na passagem do ar pelas narinas, mesmo que seja somente durante instantes. Ao fim do primeiro dia essa concentração deve ser conseguida por períodos cada vez mais prolongados. No dia seguinte foca-se a tenção à zona entre as narinas e o lábio superior. No terceiro dia reduz-se a área onde nos focamos, para uma triângulo imaginário entre as narinas e o lábio superior. Assim pretende-se diminuir a intensidade dos pensamentos que constantemente afluem à nossa cabeça como uma cascata ou um rio tumultuoso. Os pensamentos estão constantemente a saltar do passado, antigo ou recente, para o futuro, com previsões e conjecturas sobre o que há-de vir, sempre construindo complexas e instáveis arquiteturas de pensamentos, sem aparente continuidade ou sequer relação. É extenuante o esforço para manter a mente focada no presente.
Quando me apercebia que a minha mente vagueava para outra paragens, voltava a focar-me na espiração, para segundos depois estar novamente alheada dessa intenção.
As horas foram passando e o esforço foi sendo cada vez maior; sentia dores no corpo, não as resultantes de estar sentada muitas foras no chão, de pernas cruzadas, mas uma dor intensa, vinda do interior e espalhada por todo o corpo, como se fosse o sintoma de uma gripe ou a aproximação de um estado febril.
No dia seguinte, após as primeiras horas de meditação essa sensação, que tinha desaparecido com o repouso, voltou, mais intensa e acompanhada de lágrimas que me humedeciam as pestanas, e que não tinham qualquer justificação.
Milhares de pensamentos e de recordações forma passando pela minha cabeça, mas a nenhum eu conseguir atribuir o motivo desta vontade de chorar; nem tão pouco consegui perceber o motivo das dores e do mal estar que sentia. Um pouco desorientada fui falar com a professora, que sempre estava presente durante as meditações, durante o intervalo existente após o almoço e que está reservado para os alunos colocarem questões e duvidas sobre o método; fui esclarecida em relação ao que sentia: era perfeitamente normal e bastante frequente, fazia parte do processo e que devia de continuar… era uma etapa do percurso.
No fim desse dia, o segundo, o mal estar que até então sentia foi substituído por uma certa leveza o que fez com que ganhasse confiança e aumentasse o meu esforço e a minha capacidade de concentração. Pela primeira vez deixei de ansiar pelo som da campainha que marcava o fim de cada uma das secções na sala de meditação.
O terceiro dia foi passado em grande luta interior, mas desta vez deixei-me levar por alguns pensamentos e não me preocupei tanto com a respiração pois estava as sentir que me fazia bem enfrentar alguns assuntos do passado que acho que ainda se manifestam em alguns dos mus comportamentos e medos. Numa das noites, já não consigo situar em qual, sonhei com pessoas e situações que pensava já não terem lugar nas minhas memórias… talvez o passado não tenha ainda passado totalmente.
O quarto dia, que para mim foi o ultimo, foi efetivamente o primeiro dia do processo do Vipassana. Até então tínhamos estado a percorrer um caminho de preparação: inicialmente o “shila” e depois o “samadi” que são como níveis de concentração e que correspondem a uma diminuição da atividade cerebral e a uma maior focagem no presente.
As duas horas que durou o Vipassana, que marca o primeiro contacto com o “pannã”, sempre a ouvir as instruções do Goenka emitidas pelas colunas espalhadas pela sala, foram extremamente intensas, onde a atenção deixou de estar focada na respiração, mas passou a ser dirigida para a procura de sensações, como calor, frio, comichão, movimentos sob a pele, etc… inicialmente no topo da cabeça e daí passando por todo o corpo até aos pés, membro a membro, articulação a articulação…
Pouco depois da primeira hora, o meu corpo começou a dar sinais de que precisava de sair daquela postura de pernas cruzadas. Apesar das indicações para manter a imobilidade durante estas duas horas, não consegui evitar e tive procurar outra posição, mas mesmo assim não consegui evitar uma dor intensa da fundo das costas até à perna, na zona do nervo ciático. Fui chamada à atenção, para me manter na postura inicial, mas foi-me impossível e a partir daí foi um verdadeiro tormento em que ansiava por deixar de ouvir a voz lenta e arrastada do Goenka que em vez de funcionarem de incentivo, só contribuíam para o meu desespero.
Perante esta situação acabei por desistir, sem ter completado os dez dias do curso, mas com vontade de fazer nova tentativa num centro com melhores condições.
Algumas frases do discurso do Goenka durante os vários dias do Vipassana, que ajudam a compreender o método; por comodidade optei por manter o texto em inglês:
“The final aim of this meditation is not concentration of mind. Concentration is only a help, a step loading to a higher goal: purification of mind, eradication all the mental defilements, the negativities within and thus attaining liberation from all misery, attaining full enlightenment.”
“Every time an impurity arises to the mind, such as anger, hated, passion, fear, etc… one becomes miserable. Wherever something unwanted happens, one becomes tense and start tying knots inside. Wherever something wanted does not happen, again generates tension within. Throughout life, one repeats this process until the entire mental and physical structure is bundle of Gordian knots. And one does not keep this tension limited to oneself, but instead distributes it to all whom one comes into contact.”
“… meditation course to learn the art of living: haw to live peacefully and harmoniously within oneself, and to generate peace and harmony for all others.”
“Breath is a tool with which to explore the truth about oneself.”
“On this path, whatever is unknown about yourself must become known to you. For this purpose respiration will help. It acts as a bridge from the known to the unknown…”
“One reality of mind (…) is its habits of always wondering from one object to another. It does not want to stay on the breath, or on any single object of attention; instead it runs wild.”
“The goal of this technique is to purify the mind, to free it from misery by gradually eradicating the negativities within. It is an operation deep into ones own unconscious, performed in order to uncover and remove the complexes hidden there.”
“The contact of these positive and negative forces produces an explosion. Some of the impurities hidden in the unconscious rise to the conscious level, and manifest as various mental or physical discomforts.”
“… what seems to be a problem is actually a sign of success in the meditation, an indication that in fact the technique has started to work.”
“Continuity of the practice is the secret of the success. You have to do the work; no one else can do it for you. (…) you receive the support of all “Dhamma” forces, but still you have to work yourself. You have to work entire path yourself.”
“You will take your first steps in the field of “pannã” when you star to practice Vipassana (…) to penetrate to penetrate in the deeper levels and eradicate the impurities hidden there.”
“Work patiently, persistently and continuously for your own good, your own liberation.”
“May all being be happy.”
Glossary:
Sila: is morality; abstaining from unwholesome deeds of body and speech.
Samadi: is the wholesome action of developing mastery over one’s mind; practicing both is helpful, but neither can eradicate all the defilements accumulated in the mind.
Pannã: is the development of the wisdom, of insight, witch totally purifies the mind.
Vipassana: introspection, insight witch purifies the mind; specifically into the impermanent, suffering and egoless nature of the mental-physical structure; the systematic development of the insight through the meditation techniques of observing the reality of oneself by observing sensations within the body.
Dhamma: phenomenon; object of mind; nature law; law of liberation; touching of an enlightened person.