Enquanto sobrevoo as montanhas do Afeganistão, onde nos vales cresce uma escassa vegetação, que salpica de manchas escuras o solo árido e despido, oiço o som do piano de uma sonata de Bach, disponibilizada pela companhia aérea de forma a tornar esta viagem de umas quase onze horas numa experiência agradável.
Para trás ficou a Índia, com o ultimo passado em Delhi, que nada teve de particularmente agradável: uma escala obrigatória no regresso a Lisboa, constituindo uma mudança abrupta em relação aos dias passados calmamente em Pondicherry.
Há medida que o avião se afasta do continente Asiático em direção à Europa, às montanhas afegãs sucedem-se vastas planícies de deserto arenoso, corajosamente atravessadas por um sinuoso rio, à volta do qual o homem se foi fixando em improváveis povoações; surgindo depois vasta planície, árida e rochosa timidamente recortada por um emaranhado de estradas, que vistas de cima a esta altitude, mais se assemelham a finos capilares e que atestam a presença humana em tão agreste paisagem.
É tempo para reflexão e para fazer o balanço desta viagem de quase cinco meses. Ficou uma paixão pela Índia. Um desejo de voltar e de ficar mais tempo.
Como tudo o que é intenso e excessivo, a Índia é capaz de provocar facilmente uma grande repulsa assim como uma grande paixão. Incluo-me no segundo grupo, mas reconheço que em alguns momentos fui levada ao meu limite, não conseguindo por vezes lidar emocionalmente com o que via e com o estava a viver.
É preciso desenvolver uma grande tolerância e paciência para conseguir lidar com o quotidiano de um país superlotado, à primeira vista caótico mas com uma organização complexa e rebuscada, onde o lixo é uma constante e a higiene se rege por padrões diferentes dos ocidentais. É um teste à capacidade de cada um de se adaptar e de saber lidar com as adversidades e com os entraves que constituem a vida quotidiana dos indianos, mas que ele encaram sem queixas ou resistência, como se tudo o que nos rodeia fosse somente ilusão e por isso sem relevância.
“If God gave heaven to indians, twenty-four hours later it would be no different from hell” texto retirado do livro “Sadhus, going beyond the dreadlocks” de Patrick Levy
O que ficou da Índia? Ficaram… as deslumbrantes paisagens coroadas de neve dos Himalaias, a característica cultura do Ladakh, protegida pelas montanhas áridas, a cidade de Srinagar, com a hospitalidade característica de Kashmir, o sul com a deliciosa comida e a cultura orgulhosamente conservada pelos habitantes de Tamil Nadu, e Pondicherry, pelos doces dias que proporcionou.
E ficou a recordação de pessoas que marcaram, e cuja amizade é um terreno a cultivar.
Mas acima da tudo, o mais marcante da Índia são as pessoas. São elas a melhor paisagem. E são elas que proporcionam a poderosa energia que este país tem.
Sobrevoei montanhas, desertos, mares… agora observo da minúscula janela do avião nuvens compactas que formam um relevo que em tudo se assemelha a uma paisagem terrestre, formando vales, planaltos e encostas, realçados pela escassa luz que ainda ilumina o céu, criando uma ténue linha de tons laranja que contrasta com as cores frias do céu que aos poucos se vai apagando, mas que pontualmente se ilumina com os relâmpagos da tempestade, que incólumes sobrevoamos.
Um pôr do sol que à medida que caminhamos para oeste, se demora no horizonte, como se o tempo estivesse suspenso. Um dia que teima em não terminar.
Bach deu lugar a Schubert!