Ao fim de mais de quatro meses sem ver o mar, encontro-me finalmente na Baía de Bengal (em português chamada de Golfo de Bengala), em Chennai, no estado de Tamil Nadu, no sul da Índia.
O cinzento do céu que não deixa passar um único raio de sol, confere às águas um tom baço, tornando-as escuras e acastanhadas, que vêm rebentar junto na grossa areia. Sopra uma brisa quente e carregada de humidade, mas que em nada se compara ao que nesta altura do ano se sente em Delhi e Varanasi…. aqui ainda não chegou a monção.
A praia de Chennai, chamada Marina Beach, é considerada uma das maiores praias do mundo, com uma extensão de 6 quilómetros; pode ser… mas está longe de ser uma das mais bonitas. Esta, assim como muitas das praias espalhadas pela costa indiana encontram-se sujas, tanto de lixo trazido pelas marés como pelo que é diariamente deixado pelos visitantes.
Aqui na Índia, a praia não e local para apanhar sol ou para mergulhar no mar, é sim local de convívio, onde grupos de homens e de mulheres, alguns casais e uns raros indivíduos solitários passeiam junto à água, enquanto conversam, tiram fotografias, bebem refrigerantes, comem e debicam amendoins. Algum mais audazes arriscam avançar em direção ao mar em pequenos grupos, totalmente vestidos, molhando-se na forte rebentação, sem nunca mergulharem. Subsiste ainda a pesca, a avaliar pelo número de pequenos barcos espalhados no extenso areal e pelas redes de pesca que aguardam quem as lance ao mar.

A viagem de comboio, de Delhi para Chennai, que demorou 36 horas, incluindo duas noites embaladas pela oscilação da carruagem, foi bastante calma e sem complicações. O facto de viajar sozinha e de ser o único ocidental na carruagem vez de mim vedeta, recebendo a atenção dos outros passageiros e em especial dos funcionários dos caminhos de ferro que constantemente passavam vendendo as refeições, água, chamussas, gelados, bolachas, chocolates e mais uma infinidade de coisas, só abrandado o ritmo com o cair da noite, após ser servido o jantar, para recomeçar logo ao nascer do dia com a venda de “chai”.
Valeu a pena ter gasto mais dinheiro na compra do bilhete para a viajar na classe 2AC, que é muito menos concorrida e mais espaçosa do que a 3AC onde geralmente tenho viajado. Tem a desvantagem de ser frequentada maioritariamente por homens de negócios ou por famílias de classe mais alta, que se resguardam nos compartimento, fechando as cortinas, o que torna estas viagens mais monótonas se a animação e o colorido humano que se encontra geralmente quando se viagem na “sleeper class” sem ar-condicionado.
Toda a viagem foi feita com tempo de chuva, onde o cinzento-chumbo do céu se abatia sobre a paisagem, aumentando o contraste entre o verde brilhante da vegetação, que varia entre montanhas cobertas de floresta semi-tropical, ausentes de presença humana e extensos campos agrícolas alagados pela monção, que realçam os tons vermelho ferrugem da terra.
Dentro do comboio, olhando através das grossas gotas de chuva, vendo a paisagem deslizar pela janela, iam-se abatendo sobre mim uma melancolia que juntamente com a trepidação do comboio tornavam as pálpebras pesadas, fazendo com que o livro que me acompanhava repousasse fechado ao meu lado.
De tempos a tempos, passeava pelas carruagens vizinhas para esticar as pernas e aproveitava para ficar junto a uma qualquer porta que estivesse aberta para sentir o ar morno e húmido e saborear as grossas gotas de chuva que com o vento me salpicavam o rosto. É a verdadeira sensação de viajar, de liberdade absoluta.
Acho que o que mais gosto nas viagens e o acto de viajar em si, de me deslocar… especialmente se for de comboio. Antes de chegar à estação sinto um pequeno formigueiro na barriga, um certo nervosismo, que passa à medida que me aproximo do edifício e me vou embrenhando nos seus meandros, seguindo as regras internacionais de funcionamento de uma estação ferroviária, deixadas pelos ingleses; procuro a plataforma onde se encontra o comboio que me levará a novo destino e enquanto espero, ouço em hindi e em inglês o anúncio das chegadas e das partidas emitidas em simpática voz feminina, por altifalantes roufenhos que se fazem ouvir por toda a estação. Depois de verificar o número do comboio, procuro a carruagem e o lugar que me está destinado, confirmando a minha reserva nas listagens que se encontram coladas junto à entrada de cada carruagem, com o nome, idade e sexo dos passageiros: um sistema complexo mas eficaz.
As viagens noturnas são as melhores, pois com o balanço do comboio rapidamente adormeço, e proporcionam uma razoável noite de sono, com direito a lençóis, almofadas e cobertor… sim, cobertor que apesar dos mais de 30 graus de temperatura que se sentem no exterior e indispensável para sobreviver ao frio provocado pelo ar-condiconado. Contudo uma paragem noturna, numa estação intermédia durante o percurso, provoca geralmente um despertar abrupto em resultado do barulho e agitação provocados pela chegada de novos passageiros, pois os indianos viajam geralmente em família, com crianças, transportando inúmeras malas e sacos, o que leva o seu tempo até se conseguir recuperar a serenidade no compartimento.





No livro que me acompanhou nesta viagem, “The Great Railway Bazar”, Paul Theroux, adepto das viagens de comboio, escreve que “viajar de avião é como entrar num submarino”… concordo. Perde-se a percepção de como a paisagem e o clima mudam, como são diferentes as pessoas, as roupas, os edifícios, os cheiros… como vamos sentido o passar do tempo, a chegada da noite ou o romper do dia. Mesmo a informação disponibilizada pelas companhias aéreas e que mostra o avião a deslocar-se sobre um mapa, indicando os países e cidades que estamos a sobrevoar, não é suficiente para nos fazer sentir que estamos realmente a viajar, mas somente nos dá a percepção de que nos estamos a deslocar. E nunca nos preparam para o choque que é chegar ao destino, com outro clima, outra cultura e com um horário totalmente diferente que nos deixa atordoados durante dias.
A desvantagem das viagem de comboio feitas de noite é a impossibilidade de apreciar a vida que fervilha nas várias estações, perdendo-se também as mudanças que se registam na paisagem à medida que atravessamos o vasto território indiano… é quase como se fosse uma viagem de avião, mas sem os problemas da adaptação aos fusos horários nem da mudanças brusca de clima.
Destes quase cinco meses passados na Índia, registei os quilómetros percorridos nas 11 viagens que fiz de comboio, e que se encontram indicados nos bilhetes: 8254 quilómetros no total.
Fiquei a saber que é possível atravessar a Índia, de norte a sul num único comboio, numa viagem que demora entre 60 a 86 horas, ligando a cidade de Jammu, no estado de Kashmir a Kanyakumari, o extremo sul do país, onde o Mar Arábico se junta com a Baía de Bengal (ou Golfo de Bengala), no estado de Tamil Nadu, perfazendo 3500 quilómetros… aqui está um desafio!
(este texto data de Julho de 2013)
