Neste este ultimo ano passado na Ásia, muitos quilómetros percorridos, vários meios de transporte, muitas aventuras, muitas viagens: umas boas, outras más; algumas ficaram registadas na memória, mas muitas que foram remetidas para o esquecimento.
A viagem entre Mandalay e Sittwe ficará viva por muito tempo; não foi a pior viagem em termos psicológicos, essa ficou registada na Índia no percurso Leh-Srinagar, mas a mais desgastante em termos físicos: 56 horas de viagem, somente com uma pausa para dormir numa cama, de três horas. Um excesso em termos físicos e um desafio em termos psicológicos.
Mas de inicio nada previa tamanha façanha, sendo o destino à saída de Mandalay a povoação de Mrauk-U, situada a não mais de 625 quilómetros, mas para onde não existe ligação directa em transporte publico rodoviário.
Tudo começou como começam praticamente todas as viagens que se realizam em transportes públicos nos vários países asiáticos por onde passei: de manhã, mas desta vez não tão cedo como deveria ser , pois o ideia é chegar ao terminal de autocarros, estação de comboios, cais ou porto antes das sete da manhã.
A chegada ao terminal de autocarros de Mandalay atrasou-se pela dificuldade em conseguir lá chegar sem recorrer aos táxis que para turistas praticam um preço exageradamente alto. Depois de percorrer muitas ruas, de quarteirão em quarteirão, atravessando mercados e cruzando avenidas, seguindo indicações imprecisas e por vezes contraditórias dos solícitos habitantes, cuja barreira linguística contribui fortemente para criar mal-entendidos, foi possível apanhar um transporte colectivo que nos deixou no terminal de autocarros, a mim e a minha companheira de viagem, sem a qual toda esta aventura não teria sequer começado.
À chegada, o calor do meio dia misturou-se com a frustração de todos os autocarros com destino a Ma-gway, uma paragem intermédia no percurso até Mrauk-U, o que nos empurrou para uma espera de cinco horas pelo autocarro nocturno, moderno e confortável, que nos deixaria em Ma-gway, pelas três da manhã, altura muito desagradável para procurar alojamento seja onde for, em especial em pequenas povoações pouco acostumadas a receber turistas. Quis o acaso que no mesmo autocarro, onde somente viajavam birmaneses, se encontrasse um professor de inglês que de imediato nos ofereceu a sua casa para passar-mos a noite.
Não se tratava propriamente de uma casa, mas sim de um edifico que funciona como escola, em que parte está dividida em pequenos compartimentos separados por paredes de madeira, mas que proporcionaram uma preciosas três horas de sono sobre uma esteira de bambu, protegido por uma rede mosquiteira. No dia seguinte o nosso anfitrião U-Tum-Tum, disponibilizou-se para nos levar de novo ao terminal de autocarros e ajudar a encontrar transporte para o próximo destino, depois de gentilmente nos pagar o pequeno-almoço. São estes gestos que para sempre ficam na nossa memória.
Depois de pouco mais de oito horas de viagem, tendo por cenário campos agrícolas, ora ressequidos pelo calor, ora verdes pela proximidade de um rio, com pequenos aglomerados rurais de casas simples e pobres e esquelético gado, usado nos campos e como meio de transporte de mercadorias agrícolas, esperava-nos a pouco atractiva cidade de Pyay.
Mais uma horas de espera no poeirento e terminal de autocarros onde a única opção foi uma mini-van que nos levou, pela noite dentro até Taung-gok, povoação situada junto ao mar de onde poderíamos na manhã seguinte apanhar o ferry para Sittwe, pois a ligação por estrada foi interdita a estrangeiros, após a zona ter sido considerada insegura em consequência de recentes conflitos com um dos grupos étnicos que reivindica reconhecimento junto do governo de Myanmar.
A viagem que se avizinhava promissora em termos de descanso, pois as mini-vans são mais confortáveis do que a maioria dos autocarros que circula na Birmânia, revelou-se penosa devido ao trepidar constante provocado pelo mau estado da estrada, quase sempre sem pavimento, ao percurso sinuoso pela montanha e pela condução excessivamente acelerada onde por momentos o motorista perdeu o controle do veículo, mas sem consequências, para além do susto.
A chegada, ainda de noite a Taung-gok, ofereceu uma caminhada de três quilómetros desde o terminal de autocarros até ao cais de onde o ferry com destino a Sittwe inicia o seu percurso pelas sete da manhã. O que se avizinhava mais uma etapa cansativa tornou-se num percurso memorável oferecendo uma atmosfera quase mágica que caracteriza os momentos que antecedem o nascer do sol, em que da completa escuridão vão surgindo timidamente os contornos do cenário que nos rodeia. É deste negrume que vão surgindo o primeiros sons da actividade doméstica, com o acender do lume, o banho, a preparação da primeira refeição do dia, o passar de uma bicicleta com destino ao mercado… e os primeiros sons das aves que discretamente enfeitam a paisagem.
Com a aproximação ao cais surge o frenesim provocado pelas dezenas de pessoas que aqui se concentra à espera do ferry, no meio do habitual frenesim provocado pelo movimento apressado dos carregadores, pela insistência dos vendedores ambulantes, pela descrição dos mendigos, pela agitação em torno das bancas de comida e dos vendedores de paan… tudo iluminado pela fria luz elétrica proporcionada por geradores e baterias.
Próximo destino: Sittwe. Dez horas de viagem num ferry, que não é mais do que um pequeno barco, fechado, superlotado e antiquado, onde os passageiros viajam sentados em bancos que já pertenceram a autocarros, dispostos de forma acanhada, onde os corredores são ocupados cadeiras e banco de plástico improvisando assim capacidade para mais passageiros e onde a mercadoria estorva a passagem tornado cada deslocação no interior do barco numa verdadeira aventura. No tejadilho segue a mercadoria mais volumosa e mais passageiros, que efectuam somente parte do percurso e por isso não têm direito a lugar reservado.
O inicio da viagem com o barco a rasgar suavemente as estranhamente imóveis águas, coincidindo com o nascer do dia que pareceu prolongar-se pela bruma que desprendendo-se das águas cobria o céu, com a luz matinal gradualmente a definir os contornos e a dar cor à paisagem, foi envolto numa certa magia e atmosfera mágica que fez esquecer o cansaço acumulado.
As primeiras horas foram passadas no tejadilho do ferry, aproveitando o ar fresco da manhã, até que o sol rompeu a neblina, empurrando-me para o acanhado espaço no interior da embarcação onde apesar do som estridente do televisor por onde passou música pop birmanesa, consegui algumas horas de sono agitado proporcionado pelo conforto do débil ar-condicionado que proporcionava um ambiente sustentável.
Numa das idas à casa de banho, que devido à agitação do mar da Baía de Bengal, me impediram de aceder pelo exterior da embarcação, obrigando a atravessar o segundo compartimento, uma espécie de segunda classe; tentativa que se revelou impossível dada a quantidade de pessoas que se aglomerava no abafado espaço, ocupando escadas e corredores, sofrendo os tormentos dos enjoos marítimos, numa visão que se revelou tenebrosa, aos meus sentidos mais sensíveis devido ao cansaço, lembrando um navio de refugiados, onde todos os olhos apontavam para mim.
Todo este cenário, somado à falta de descanso, sujidade, desconforto, fracas e irregulares refeições, ao longo de três dias em viagem com temperaturas a rondar os quarenta graus, despertou um sentimento de contacto com a realidade do quotidiano de um país pobre, deixando para trás o sentimento de passeio turístico que em tem acompanhado nos últimos meses, longe do fascínio das paisagens, dos templos e dos palácios.
É uma realidade feia e pobre, de roupas rasgadas, de calçado de má qualidade, de dentes podres, de trabalho infantil, de falta de higiene, sem esgotos ou água potável… é a realidade em que vive uma boa parte da população mundial. É esta realidade que o governo de Myanmar não quer que se veja, restringindo o acesso a certas áreas do país ou dificultando a movimentação aos estrangeiros que optam por sair do trilho turístico definido pelo governo e impresso nos guias de viagem.
















