Pouco depois da minha chegada no início do Outubro, notei pelo vários locais por onde tinha passado algumas lojas dedicadas à venda de bandeiras, faixas e estandartes onde dominava o preto, com inscrições em caracteres árabes. De dia para dia parecia que estas lojas cresciam em número ou simplesmente se tornavam mais evidentes, encontrando-se nos bazares e um pouco pelas ruas das cidades, expondo os seus artigos que incluíam também lenços, calças, camisas e véus, para além do limite das lojas, em expositores e bancadas que se estendem ocupando os passeios.
Mas foi no segundo dia após a chegada a Kashan, quando a lua se deixa de ver no céu, que senti que algo tinha mudado na cidade… as ruas enfeitadas com estandartes, os corredores dos bazares decorados com bandeiras, tudo invariavelmente preto com inscrições a verde ou vermelho, muitas mulheres de chador, homens de camisa preta… uma espécie de luto. Era o inicio do Muharram (Moarrão em português) o primeiro mês do calendário Islâmico que se inicia com a lua-nova, variando de acordo com o calendário Gregoriano.
Muharram é a segunda celebração mais sagrada para os muçulmanos a seguir ao Ramadão, e para a fação Xiita (Shias) tem um significado especial pois ao décimo dia do Muharram, o Dia do Ashura celebra-se a morte de Hussein (Husayn ou Hossein), neto de Maomé (Mohammed) e um dos 12 Imams (espécie de santos ou apóstolos da religião muçulmana) sucessores do profeta.
No ano de 680 DC, o Imam Hussein e 72 dos seus seguidores, foram cercados durante nove dias, passando por provações sem comida e sem água, tendo sido mortos ao décimo dia na Batalha de Karbala e os sobreviventes sido encarcerados. Este episódio, visto como a luta entre o bem, Hussein, e o mal, personificado pelo Califa Yazid I que ao comando das tropas árabes invadiu a Pérsia, marca a cisão da religião muçulmana entre Sunitas (Sunni) e Xiitas (Shias).
Estes eventos ocorridos 1335 anos atrás, são comemorados de forma intensa e emotiva com as manifestações de pesar e dor a tornarem-se mais intensas, com o luto mais carregado, tanto para homens como para mulheres, procissões, prantos e lamentos, batendo no peito, carregando pesados andores sobre a cabeça ou ombros, ou praticando autoflagelação com correntes que são atiradas sobre os ombros, contra as costas.
Os últimos três dias são os mais importante, sentindo-se tensão no ar com a chegada do anoitecer, altura em decorrem as celebrações, nas ruas ou nas mesquitas, que chegam ao auge no décimo dia, Dia do Ashura, que significa “décimo”.
Durante os dias que antecedem o Ashura, um pouco por toda a cidade, seja em lojas, em carros ou vindo das casas soam os cânticos relacionados com o martírio de Hussein, entoados como um lamento, seguindo o compasso da batida dos tambores. O mesmo ritmo que comanda as cerimónias nocturnas do bater no peito e do atirar das correntes. Um ritmo intenso e pesado, numa cerimónia masculina, onde as mulheres têm um lugar secundário.
Toda esta devoção, onde não é raro as pessoas chorarem, os cânticos a soarem como lamentos, o preto que dominar a decoração e as roupas, a emoção e intensidade colocada nas cerimónias, criam uma atmosfera extremamente intensa e emotiva, que somente pode ser experienciada no local. Segundo a tradição a quem verter lágrimas durante o Ashura, tem os seus desejos realizados por obra o Imam Hussein, e não é raro ver os homens chorarem seguindo as palavras de um orador, que em forma de cânticos relata o martírio de Hussein.
Um olhar superficial pode achar todas estas exageradas manifestações com fanatismo religioso, mas o que senti é que à uma profunda e honesta devoção… com uma pitada de competitividade e mesmo de exibicionismo na forma como os homens mais novos batem no peito sabendo que nas galerias assistem atentamente as mulheres.
No dia a seguir ao Ashura, realiza-se o Ashura Carnival, um desfile de grupos de pessoas e de carros-alegóricos que contam os vários episódios do martírio de Hussein e dos seus seguidores. Este cortejo assemelha-se a um desfile de Carnaval, mas onde em vez de divertimento se vive uma atmosfera séria e de pesar, mas já longe da intensidade do dia anterior. Do final, encerrando o desfile um gigantesco andor construído em madeira é transportado por centenas de homens que completam três voltas pelo pátio da mesquita.
As celebrações terminam nesse mesma noite com, sham-e ghariban, com a população reunindo-se junto a mesquitas e praças em vários pontos da cidade de Yazd, onde assisti aos últimos dias do Ashura, para acender velas o que confere um ambiente especial de calma e serenidade.
O Ashura é celebrado um pouco por todo o mundo onde esteja presente uma comunidade Xiita, sendo as celebrações no Irão muito mais moderadas do que é frequente encontrar em imagens de outros países como no Paquistão ou no Iraque onde a prática de autoflagelação é levada ao extremo, provocando feridas graves nos participantes, atitude condenada por alguns religiosos. No Irão estas práticas são proibidas, e apesar das mazelas deixadas pelo bater violento das mãos contra o peito, vezes a fio, e o atirar de correntes contra as costas, não atinge proporções exageradas nem estados de transe, com a população mostrando-se comedida, apesar da agitação e excitação que se sente no ar.
Estar no Irão durante o Ashura, por mero acaso, foi sem dúvida uma experiência única, intensa e inesquecível, tendo ao mesmo tempo sido um período um pouco “pesado” resultante de toda a solenidade e austeridade que se espalhou entre a população, que nem por isso deixou se mostrar a generosidade e a simpatia habituais.
Durante estes dias é oferecido chá em pequenas bancas improvisadas um pouco por todo o lado, sendo por vezes também oferecida comida, como o Gheimeh, um estufado de carne de borrego, lentilhas e legumes servido com arroz e o Sholehzard, um pudim feito de arroz e açafrão. Outras das refeições tradicionais é o ash, cujos ingrediente contendo borrego, são cozinhados por voluntários durante toda a noite, ficando pronto na manhã seguinte para o pequeno-almoço.
Durante o Ashura, em especial nos últimos 3 dias:
Nos últimos três dias a maior parte das lojas estão fechadas, o que inclui bancos, lojas de câmbio, restaurantes, mercearias, etc… comida praticamente só a que é distribuída gratuitamente durante as celebrações ou a dos restaurantes dos hotéis.
Muitos serviços de autocarros, tanto locais como de longo curso são cancelados.
Convém vestir modestamente, evitando cores fortes ou claras, roupa florida, etc… contudo para os turistas há sempre mais tolerância.
Como é um período de pesar e de luto, devem-se evitar manifestações públicas de grande entusiasmo, como dançar, ouvir música, rir às gargalhadas…
Imam Hussein Fan Club:
O Ashura comemora-se em todo o Irão, tanto em cidade como em pequenas povoações, e celebrações podem ser vistas tanto nas ruas da cidade com nas mesquitas, sendo o acesso livre e gratuito.
Um pouco por acaso, juntei-me a um grupo denominado Imam Hussein Fan Club, que sem intenções comerciais organizou para os turistas presentes em Yazd, deslocações para assistir às cerimónias durante os últimos dias do Ashura. Este grupo, foi constituído por guias turísticos com vista a incentivarem o chamado “turismo religioso” e acima de tudo promover o Irão em termos turísticos, tentado limpar a imagem de islâmicos radicais com que muitas vezes este país está catalogado.
Uma organização excelente que disponibilizou acesso a zonas reservadas das mesquitas, veículos para visitar outras formas de celebrar o Ashura, afastadas do centro da cidade de Yazd, e inclusive algumas refeições. Contudo, toda esta organização pouco espaço oferece a quem quer deambular por conta própria, com os vários elementos da organização a não deixarem muita liberdade de movimento.